Nas semanas que antecederam o início dos jogos olímpicos, já teve no
Rio de Janeiro: sequestro de atleta, estrangeiros presos em meio a um
tiroteio e roubos. Poderia ser só uma questão midiática, mas dados do
ISP (Instituto de Segurança Pública) comprovam que houve aumento de 17,5% no número de crimes de letalidade; e de 34,1% de roubos e pequenos furtos, considerando o período entre janeiro e junho deste ano.
Diante deste cenário, o país tem se esforçado em mostrar que é seguro
com a prisão de suspeitos de terrorismo, o aumento de contingente de
forças de ordem recrutadas para jogos — são milhares de policiais,
soldados do exército e da guarda nacional — e também com o uso da
tecnologia. Um dos destaques é a aquisição de quatro balões de
vigilância comprados pelo governo do Rio de Janeiro.
Os balões Big Brother
Comprados por R$ 24,5 milhões, esses balões de vigilância são capazes
de permanecer no ar por dias a custo muito menor que o dos helicópteros
utilizados até então. Com 13 câmeras, as aeronaves monitoram um raio de
4 km de distância, com precisão para identificar detalhes como placas
de automóveis, armas e facas.
Produzidos pela empresa brasileira Altave, os balões são também
fabricados no exterior por outras companhias e monitoram áreas de
conflito como Afeganistão, Faixa de Gaza e a fronteira México-Estados
Unidos. “Cada equipamento instalado na Barra, em Deodoro, no Maracanã, e
em Copacabana vai gerar uma imagem que é uma espécie de Google Earth ao
vivo”, explica Leonardo Mendes Nogueira, diretor da Altave.

Balão produzido pela Altave. Crédito: divulgação
Os balões que vigiarão as multidões durante os jogos fazem parte do
propagado legado olímpico. Treinados pela fabricante, 60 policiais
militares e 20 guardas civis serão os responsáveis por operar as
aeronaves após os jogos, em esquemas de segurança no cotidiano do Rio de
Janeiro, em locais e datas ainda não definidos.
Existem diferenças entre utilizar esses equipamentos em grandes
eventos e apontar suas câmeras para zonas residenciais. O que nos faz
questionar, por exemplo: quais protocolos de segurança de dados serão
seguidos pelas forças de ordem? Para onde serão transmitidas as imagens?
Quem terá acesso a elas? Em áreas urbanas densas, como as favelas
cariocas, quem garante que as câmeras não filmarão cidadãos dentro de
suas próprias casas, em ações privadas?
Cada balão possui oito portas de transmissão ao vivo que podem ser
conectadas ao mesmo tempo: existe garantia de que essas portas são
seguras? Quais mecanismos garantem que uma ou mais dessas portas não
sejam usadas para transmitir imagens ao vivo para criminosos, por
exemplo?
• Emissora japonesa começa a transmitir conteúdo em 8K em preparação para Olimpíadas do Rio
• Google, Apple, Twitter e Microsoft se preparam para as Olimpíadas do Rio
“Não vamos entrar em detalhes técnicos sobre esses temas neste
momento”, respondeu Enrico Streliaev Canali, chefe de comunicação do
Ministério da Justiça, órgão que coordena as operações de segurança dos
jogos.
A negativa de transparência governamental é mais um elemento que
mostra a fragilidade do sistema diante do quadro atual: o Brasil não tem
uma lei de proteção de dados pessoais e não existem protocolos claros
de controle desses equipamentos, nem em termos gerais, nem em termos
específicos para o caso dos balões vigilantes. O Projeto de Lei 5276/2016, um dos projetos que trata do assunto, ainda está em tramitação.
Além disso, três dos quatro balões serão operados pela Polícia
Militar do Rio de Janeiro, uma corporação com longa ficha de abusos de
poder contra a população civil — a mais recente delas foi, por ironia, o
sequestro justamente de um atleta neo-zelandês, liberado após pagamento de resgate aos próprios policiais que o sequestraram.
“O que vocês fizeram de bom ontem? Eu fui sequestrado. Go Olympics! #Rio2016”
Dois motociclistas, agentes do Batalhão de Policiamento em Vias
Expressas, foram presos administrativamente. “Nós não treinamos a PM e a
guarda civil nesse sentido [da proteção de dados e da privacidade]”,
esclarece Leonardo Mendes Nogueira, diretor da Altave. “Nosso foco foi o
manuseio do equipamento.”
As dúvidas se acentuam quando se tem ideia de quantas pessoas terão
acesso ao dados: segundo o Ministério da Justiça, mais de 20
instituições de segurança pública — entre Polícia Federal, Polícia
Rodoviária Federal, Polícia Militar, Guarda Municipal, Secretaria de
Segurança do Estado do RJ — receberão as imagens, cada uma com seus
próprios procedimentos de atuação e guarda de dados.

Centro de integração de comando e controle do estado do Rio de Janeiro. Crédito: divulgação.
A discussão sobre o uso de balões vigilantes no Chile
“Posso imaginar ele filmando meu quarto”, disse a adolescente
Stephanie Söffge Güemes aos advogados que ouviam sua história para
montar uma ação contra a prefeitura de Santiago , capital do Chile.
“Estou fechando as janelas a toda hora, me sinto vigiada 24 horas por
dia, sete dias por semana, chego a ter calafrios”.
Stephanie via a olho nu, da janela de seu quarto, um dos três balões
instalados nos recantos mais pobres das áreas ricas da capital chilena.
Em nome da segurança, sem protocolos de gestão das imagens e dos dados
coletados — exatamente como no Brasil — , a prefeitura da cidade havia
importado os equipamentos de Israel e os colocado em operação sem muita
cerimônia até serem questionados por entidades de direitos civis como a Derechos Digitales.
“Era uma clara violação de direitos, a começar pela privacidade. Além
do mais, esses são equipamentos militares, precisam de legislação
especial para operar em zonas urbanas”, argumenta Pablo Violler,
advogado da Derechos Digitales e autor da peça que pedia à Justiça o fim
do uso dos balões em Santiago.
A batalha, que durou meses, foi cheia de reviravoltas.
O sistema de vigilância foi anunciado em agosto de 2015. A Derechos
se associou a outras ONGs e apresentou uma liminar na corte local
alegando violação de direitos de privacidade. Os equipamentos, conforme a
peça jurídica, estariam violando a constituição do Chile por serem de
natureza militar e estarem sobrevoando zonas residenciais. “O balão tem
capacidade de monitorar a rotina das pessoas, gravar em situações
íntimas dentro das casas, pátios e piscinas”, descrevem os advogados.
Pelas redes sociais, as ONGs conseguiram mais dois cidadãos
incomodados, dispostos e serem parte no processo contra o município. Na
acusação, eles diziam ver os balões de dia, e, à noite, e se sentiam
ameaçados por suas luzes que piscavam de modo intermitente. “Se podemos
ver os balões de dentro de casa, eles também podem nos ver.”

Foto tirada na rua e imagem obtida por um dos balões chilenos, conseguida via Lei de Acesso à Informação. Crédito: LUN
A liminar levantou uma polêmica pública nacional, com extensa
cobertura dos meios de imprensa e forte envolvimento do poder público. A
luta contra a delinquência comum justificava esses balões?
Para a prefeitura, sim: celebridades foram destacadas para defender a
permanência dos equipamentos no ar, campanhas digitais foram criadas,
outdoors foram instalados e até mesmo pesquisas foram divulgadas, uma
mostrando que 83% da população de um dos bairros apoiava os balões,
outra, como último esforço, mostrando que os balões diminuíram em 44% a
criminalidade local.

Outdoor pago pela prefeitura para defender o uso dos balões. Crédito: reprodução
As ONGs contra-atacaram: circularam nas redes uma campanha pelo
direito à privacidade. Com adesões, conseguiram chamar atenção de uma
banca de advogados que encampou a causa de graça. Chamada pelos meios de
comunicação como “a discussão pública mais importante sobre privacidade
no Chile desde o fim da ditadura militar”, a luta terminou nas mãos dos
juízes, que em primeira instância decidiram tirar os balões de
circulação.

Crédito: Derechos Digitales
“Direitos humanos são menores que a segurança pública”. A frase foi
dita pelo sub-prefeito do bairro de Alcalde, onde dois balões estavam
instalados, após o veredicto. Diante da insistência de que os
equipamentos eram perigosos por terem capacidade de filmar dentro das
casas, ele emendou: “Tomei uma atitude em relação a isso: só contratei
mulheres para operar os balões, porque os homens são mais voyeurs”. Uma
emenda e tanto.
A derrota fez com que a prefeitura coletasse assinatura nas ruas, nas
casas, buscando pessoas que apoiassem os balões. No recurso judicial,
mais de 350 assinaturas foram juntadas ao processo, todas a favor das
câmeras. “Mas nosso argumento jurídico era se os balões violavam
direitos fundamentais, e não se as pessoas estavam a favor ou contra”,
defendeu Violler, da Derechos.
Migração do crime
Afinal, os balões equipados com câmeras realmente combatem a
violência? A prefeitura de Santiago pagou um informe nos jornais de todo
o país para divulgar um estudo que garantia: sim, os delitos no raio de
operação dos balões haviam sido reduzidos em 25%.
A Derechos Digitales desconfiou e foi investigar a fundo, requerendo
da administração municipal os números sobre a criminalidade em toda a
cidade — e descobriu que de fato o índice havia baixado nas áreas
vigiadas, mas aumentado em outras. Os ladrões andaram algumas quadras
adiante e seguiram praticando delitos. “Esse movimento é clássico”, diz
Natalia Suazo, jornalista argentina autora do livro Guerras de Internet, que trata dos impactos muitas vezes negativos das tecnologias.
“Pesquisei em toda a América Latina e posso afirmar que câmeras
apenas fazem o crime migrar”, disse em entrevista após um workshop sobre
vigilância digital organizado em Buenos Aires, em abril deste ano,
pelas ONGs Derechos Digitales, do Chile, e Coding Rights,
do Brasil. Preocupada com a crescente vigilância e aumento de compras
de equipamentos no continente latino-americano, a Coding Rights está
produzindo um dossiê de narrativas sobre o tema, a ser publicado ainda
este ano. “Questões de segurança são importantes, mas o uso de
tecnologias de vigilância não pode ser tão invasivo à privacidade de
todos”, diz Joana Varon, diretora executiva da Coding Rights. “Um
equipamento que tem capacidade de nos filmar na intimidade do lar nos
deixaria mais seguros?”.
O processo no Chile terminou em junho deste ano. A prefeitura
recorreu à Suprema Corte do país e conseguiu permissão para utilizar os
balões. Para as ONGs de direitos civis, uma vitória parcial: a corte
reconheceu que a forma como o governo operava os equipamentos poderia
violar direitos fundamentais dos cidadãos e considerou estabelecer
limites ao uso e protocolos de gestão de dados.
Vídeo mostra funcionamento de balão — este do vídeo não é o igual ao comprado pelo governo do RJ.
Hoje, os balões em Santiago têm delimitação de espaço físico, só
podem estritamente operar e gravar espaços públicos. “É um avanço, mas
não dizem como vão controlar isso”, diz Violler, da Derechos. “No
Canadá, por exemplo, há limitações técnicas que dizem claramente os
lugares onde não pode gravar. Se tiver casas muito próximas, não pode.
Aqui é genérico, não diz como vai ser, quais são os padrões.”
Além disso, um inspetor ou delegado municipal precisa se certificar
de que as imagens são eliminadas todos os meses, elas não podem ser
mantidas por tempo indefinido. As ONGs estão estudando a hipótese de
recorrer a instâncias internacionais de direitos humanos, como a Corte
Americana Direitos Humanos, para tentar impedir os balões de funcionar
de modo definitivo no Chile.
E no Brasil? A grande dúvida sobre a capacidade dos balões de
vigilância de baixar os níveis de criminalidade persiste. Além disso, o
Ministério da Justiça não se posicionou sobre a existência (ou não) de
protocolos de direito à privacidade, controle das portas de transmissão
das imagens ao vivo e segurança dos dados armazenados. Uma janela aberta
para abusos e usos indevidos.
Fonte: Gizmodo