No final de março, os usuários de internet do Brasil ficaram de
cabelo em pé com a notícia de que as operadoras de telefonia pretendem adotar franquias na banda larga fixa.
Mais preocupante ainda, essa era a postura de gente que deveria
fiscalizar as teles, como João Resende, presidente da Anatel – cujo discurso sobre gamers
foi um show de ignorância, para dizer o mínimo. Desde então, as
franquias estão suspensas por tempo indeterminado, e ficamos na promessa
de que um decreto barraria os limites. No entanto, ainda não há no horizonte um final para essa novela.
Nós nos posicionamos contra o plano de franquias,
e decidimos ir mais a fundo para tentar entender como o usuário de
tecnologia é afetado quando a banda larga fixa é limitada. Mais ainda, a
gente tentou entender como o Brasil é prejudicado quando importantes
segmentos tecnológicos sofrem com a falta de internet ou o fornecimento
de internet limitada.
Para tanto, decidimos olhar para segmentos que acreditamos que farão
ou continuarão a fazer parte de nossa vida no futuro. Começamos
pelo streaming de vídeo e internet das coisas. No Brasil e no mundo,
alguns deles estão em estágio mais ou menos avançado em termos de adoção
e desenvolvimento, mas todos têm o potencial de transformar vidas.
Aquela promessa de um futuro ultraconectado e tecnológico dos filmes
passa por esses segmentos – desde que, claro, eles venham acompanhados
de uma internet sem limites.
Então, levantamos pesquisas e conversamos com empresas, pesquisadores
e associações para tentar entender o tamanho do problema, tanto para
usuários quanto para o país. De modo geral, a conclusão é preocupante.
Com as franquias, o Brasil perde competitividade e transforma seus
cidadãos em internautas de segunda classe.
Vídeo por streaming
Quando veio a público a discussão sobre capar a banda larga, o foco
foi logo colocado no Netflix. Deu-se ares de que se tratava de algo
supérfluo, um verdadeiro “drama classe média”.
Um dos argumentos das operadoras era de que o usuário casual poderia
ser beneficiado e pagar menos, deixando o usuário hardcore, o viciado em
séries e filmes, pagar mais pela utilização da infraestrutura. A
definição de “usuário casual” era daquele internauta que checa emails e
navega moderadamente por portais e redes sociais.
O problema é que a própria definição de usuário casual mudou. Segundo a TIC Domicílios 2014,
pesquisa realizada pelo Centro Regional de Estudos para o
Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), mais da metade
dos internautas brasileiros já assiste a vídeos na internet. No total,
58% consomem aquilo que está em sites como YouTube e Netflix. Quando
considerados aqueles que acessam a rede pelo computador de mesa e também
pelo celular, o número sobe para 69% (a pesquisa tem números para quem
navega só por desktop, só por celular e pelos dois). Ou seja, o usuário
casual também está se tornando aquele que assiste vídeos.
Além disso, 84% de internautas “desktop + celular” visitam redes
sociais, e está claro como esses sites estão cada vez mais repletos de
vídeos. Basta saber que em 2015, o Facebook tinha 4 bilhões de
visualizações diárias de vídeos.
O foco no Netflix também ignora o fato de que o principal canal de
vídeos no país é o YouTube, uma opção gratuita que abriga uma complexa e
diversificada gama de conteúdos. Estima-se que o Netflix tenha até 4
milhões de assinantes no Brasil. O último número oficial do YouTube,
revelado em 2014, indicava que o site tinha 62 milhões de usuários
brasileiros.
Qualquer um entende o impacto imediato para quem vive no mundo das
franquias: com velocidades cortadas ou reduzidas, a experiência vira um
lixo. Você passa a se preocupar com aquilo que vai consumir e pode não
conseguir acessar algo quando mais precisa, ainda mais quando não se
sabe ao certo quanto se consome.
“Em primeiro lugar, isso é uma mudança de regra unilateral e
claramente oportunista por parte das operadoras. Não só a experiência do
usuário é prejudicada. Seu acesso a cultura também”, diz Ricardo
Feltrin, colunista do UOL, especializado em TV e que cobre o assunto. No
início do ano, Feltrin publicou que as operadoras preparavam uma ofensiva contra o Netflix. Já em abril, em outra coluna, reforçou a tese do que estava por trás do estabelecimento de franquia por parte das operadoras.
Com as limitações, vários segmentos ligados a vídeo por streaming são
afetados. “A produção pode ser prejudicada. O Brasil faz um uso
intensivo e sofisticado de internet. Entendemos rapidinho a linguagem de
produção de conteúdo para vídeo. É só perceber o larguíssimo
ecossistema de YouTubers crescendo cada vez mais”, diz Carlos Affonso
Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.
Educação a distância
Mas, por um segundo, deixe o entretenimento de lado. Vídeo por
streaming é fundamental para a educação em um país de grandes extensões e
problemas estruturais. A educação à distância – incluindo cursos
técnicos, de aprimoramento e até de graduação – depende fortemente de
streaming de vídeo. Segundo dados mais recentes disponíveis no censo do
ensino superior, feito pelo Inep, 1,1 milhão de matrículas em cursos de graduação à distância foram feitas em 2013.
Além disso, some-se aqueles que estudam em instituições estrangeiras ou aqueles que optam por cursos como os da Khan Academy. Este texto de Leandro Demori é fundamental.
Assim, é possível imaginar um cenário em que os alunos vão ponderar
se devem acessar o material com medo de pagar para consumir além da
franquia – um desastre para a já capenga situação da educação no país.
Vale lembrar: vídeo em HD consome cerca de 3 GB por hora. Um curso de
duas horas com vídeo durante cinco dias na semana nessa resolução
gastaria 30 GB, mais do que o dobro dos planos mais básicos, de 10 GB,
imaginados pelas operadoras.
Além disso, quando se fala de educação, também se fala de inclusão. E
o potencial para deixar os mais pobres de fora da internet é alto com
as franquias. Segundo uma pesquisa da consultoria VisionMobile, 72% da
internet no Brasil é acessada da banda larga fixa, ao contrário de
países como Índia (27%), Japão (35%) e EUA (55%). E os mais pobres são
os que mais dependem, por exemplo, das lanhouses – um segmento que
parece extinto, mas que ainda sobrevive.
Segundo o TIC Domicílios 2014,
23% dos internautas com renda familiar de até um salário mínimo se
conectam por lanhouses. Evidentemente, franquias nas conexões vão
sufocar esses pequenos negócios e deixar de fora da rede membros das
classes D e E.
Mercado de TVs
Até agora, estamos falando apenas de conteúdo. Mas e os dispositivos
para streaming de vídeos? Em 2015, as smart TVs venderam 10% a mais do
que em 2014, mesmo com a economia brasileira encolhendo 3,8%. A
categoria representou 50% do faturamento da categoria de TVs no Brasil,
segundo a consultoria GfK. “O conteúdo de vídeo em streaming aumentou e
se tornou mais relevante no mercado brasileiro, favorecido pela
popularização da internet banda larga no Brasil”, diz a empresa.
Ainda é cedo para afirmar que franquias na banda larga derrubarão as
vendas de TVs inteligentes, mas certamente são um obstáculo a mais. Qual
seria o incentivo para comprar mais um consumidor de dados da franquia?
O fato é que as smart TVs podem crescer muito ainda (como mostrou a
Pnad 2014, apenas 47,9% das TVs no Brasil são de tela fina), mas já
vivem um momento difícil. No ano passado, de acordo com a GfK, o mercado
geral de TVs (incluindo smart e tradicionais) encolheu 35%. Limites na
banda larga certamente não vão ajudar esse número a ficar no azul.
O mesmo vale para a adoção e popularização da resolução 4K. Uma hora de streaming em 4K pode consumir até 7 GB por hora.
E isso não vai melhorar, pois é assim que caminha a
tecnologia. Novamente, qual o incentivo para comprar TVs 4K se a sua
franquia vai desaparecer rapidamente?
“Isso é um fenômeno cruel: transformar avanços tecnológicos em luxo,
em regalias, em privilégios. Só que isso não é luxo nenhum. Não deveria
ser um privilégio. Deveria ser uma evolução natural. Isso me preocupa
muito porque o brasileiro vai se sentir excluído. Será um momento
extremamente triste”, diz Carlos Affonso Souza, diretor do Instituto de
Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.
Mesmo com todos esses aspectos e diferentes impactos, o Netflix resolveu se pronunciar para a gente:
“Os consumidores brasileiros são apaixonados por conteúdo
e pela possibilidade de assistir ao que querem online, sob demanda.
Limitar as franquias de internet é ruim para o consumidor e para a
internet em geral, pois é uma maneira ineficiente de gerenciar uma rede e
pode inibir a sua inovação. Os esforços para limitar as franquias de
internet dos consumidores em certos ISPs [provedores] irá apenas
prejudicar os consumidores e limitar o acesso pelo qual eles já pagam às
operadoras”.
Internet das coisas
Internet das coisas (IoT) é uma expressão ampla que indica a conexão à
de qualquer objeto à rede, e abriga tanto dispositivos pessoais, como
pulseiras fitness, quanto ferramentas industriais, como turbinas de
avião. A ideia é normalmente associada a redes móveis, como 4G e 5G, e a
usos corporativos. Mas esses dispositivos podem ser conectados à banda
larga fixa e ter uso doméstico. É mais um segmento que começa a ganhar
fôlego fora do Brasil e que pode ter dificuldades por aqui por conta das
franquias.
Na visão do setor tecnológico, a casa do futuro será toda conectada.
Eletrodomésticos, sistema de iluminação, sistema de segurança, e outros.
É um futuro de filme que aos poucos vai se transformando. O lance
desses dispositivos e sensores é que eles não consomem muitos dados
sozinhos. Juntos, sim. E eles serão muitos. Muitos mesmo. Segundo a
consultoria Business Insider Intelligence, existirão 34 bilhões de
aparelhos no mundo conectados à internet. Desses, 24 bilhões serão
“coisas”; e os outros 10 bilhões, aparelhos tradicionais como notebooks e
smartphones.
“Os limites na banda larga podem inviabilizar um universo de
dispositivos de IoT, pois não vai existir interesse de pagar uma banda
mais cara para fazer certos controles. Imagine você querer acessar as
câmeras da sua casa e descobrir que o Netflix estourou a franquia?”, diz
Marcelo Otte, diretor executivo do Centro de Convergência Digital (CCD)
da Fundação CERTI.
As aplicações para IoT são variadas. Podem ser feitas em hospitais ou
na produção agrícola, mas é importante que tenham tempo de resposta
baixíssimo. Do contrário, a aplicação pode ser um fracasso. Imagine um
produtor rural que decide investir em uma colheitadeira controlada à
distância. Se o operador que está na rede fixa sofre algum tipo de
limitação na conexão, a máquina pode ficar descontrolada e parar na
fazenda vizinha. Evidentemente, velocidades mais baixas por conta de
franquias não ajudam nesse cenário.
A Ericsson, que tem interesse nesse segmento, deixou claro a importância da rede sem limites na seguinte nota:
“A Ericsson tem um compromisso com a internet aberta.
Estamos convencidos de que, em um mercado competitivo, operar de modo
eficaz é a melhor maneira para se alcançar esse objetivo, e permitir e
apoiar esse mercado deve ser prioridade para os órgãos reguladores. A
nossa perspectiva faz parte de uma visão ampla que engloba a experiência
do usuário, a inovação e as ofertas diferenciadas, e que garante que as
pessoas, as empresas e a sociedade se beneficiem enquanto a sociedade
conectada amadurece.”
Carlos Affonso Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade
do Rio de Janeiro, faz uma observação importante que tanto para IoT
quanto para os outros tópicos discutidos nesta reportagem: “Esses
serviços e produtos serão trazidos para cá por empresas que já fazem
isso no exterior. Se o Brasil começa a usar uma franquia reduzida, torna
seu mercado menos lucrativo. Quem vai investir aqui se apenas um
punhado de pessoas puder usar?”. Assim, a casa dos Jetsons caiu para os
brasileiros.
Outro lado
Falamos com o SindiTelebrasil e eles reafirmaram as posições
defendidas na audiência pública no Senado do último 3 de abril. Nela,
Carlos Duprat, diretor do sindicato, afirmou que é preciso disciplinar o
uso do serviço, pois as redes são “finitas”. Também reclamou de
serviços que utilizam muito as redes e da carga tributária sobre os
serviços de telecomunicações. Para completar, afirmou que o modelo de
franquias requer conscientização e que a partir dali esse seria o foco
das operadoras.
O sindicato também defende a liberdade na implantação nos modelos de
negócios. Segundo a apresentação, as operadoras brasileiras estão entre
as que mais investem no mundo, tendo gastado 23% da receita líquida em
2014, acima de países como EUA e Alemanha. Claro, não há um comparativo
com o montante total já investido por esses países nos últimos 15 anos.
Tendo todos esses fatores em mente, o sindicato afirma que o setor de
telecomunicações está perdendo atratividade de investimentos no mundo.